Se há tema incontornável esta semana, é a passagem de quarenta anos sobre a Revolução dos Cravos, à semelhança de outras datas como o Natal, a Páscoa ou a Passagem de Ano. Podemos até nem gostar, mas sentimo-nos obrigados a dizer algo.
E infelizmente, no caso da Revolução de Abril, cada vez mais essas celebrações parecem fazer-se apenas para marcar a data no calendário, num cenário consumista, em que o verdadeiro valor da revolução se perde nas decorações também em vermelho, mas desta feita sob a forma de cravos.
Antes de celebrar, devemos olhar em redor e interrogar-nos afinal o que temos hoje para festejar?
E atenção, não estou a criticar (e como «filha da Revolução» nunca o poderia fazer), esse grande momento que mudou para sempre a vida de Portugal, um país de que me orgulho acima de tudo (o que desprezo é quem ao longo dos anos o transformou num colonato de grandes senhores).
Critico sim os cínicos festejos de uma data que para muitos deixou de fazer sentido, ou melhor, tentam a todo o custo que deixe de fazer sentido.
Critico os festejos à base de música de dança, courato e cerveja, foguetório e discursos, com ramos e ramos de cravos pelo meio e politiquices baratas.
Já o dizia José Barata-Moura, que «cravo vermelho ao peito, a muitos fica bem».
Por um lado, é fácil discursar-se com barriga cheia, fazer as festas para o povinho, chegar ao palanque e falar que estão ou estiveram no Governo e deixaram o país chegar a este ponto.
É fácil fazer grandes festas e lançar foguetes, gastando-se o que não se tem, e depois fechando os olhos e os ouvidos aos credores que ficam à porta. Encher a boca com a crise e a falta de apoio do Governo, e depois ignorar ostensivamente quem realmente precisa de ajuda.
Por outro lado, ninguém é cego que não veja que todos os direitos que foram conquistados com a Revolução dos Cravos estão, ao fim destes quarenta anos, completa e absolutamente, em perigo.
O direito ao trabalho e à segurança no emprego, a liberdade de organização, de reunião e de manifestação, o direito à greve e à negociação colectiva, o direito à saúde, à segurança social e à educação, são conquistas consagradas na Constituição da República Portuguesa.
Todos eles foram, nos últimos anos, alvo de um qualquer tipo de ataque, sob uma fórmula de resgate e de austeridade que ninguém ainda teve o cuidado de explicar por miúdos.
Antes nos atiram com medidas adicionais de redução de rendimentos, mais impostos, menos direitos, o encerramento de serviços essenciais à população, uma justiça que serve apenas os interesses económicos, o controle apertado sobre a comunicação social, a degradação do Serviço Nacional de Saúde e uma educação que sobrecarrega professores, e exclui o ensino de qualidade em nome de estatísticas.
Podemos até questionarmo-nos para que serve afinal esse documento chamado Constituição Portuguesa, se todos os pontos que ali estão definidos podem, a qualquer altura e por uma qualquer entidade, ser cilindrados por uma qualquer alínea de um obscuro decreto-lei.
Os direitos e os valores de Abril são conquistas em que acreditaram os que tudo fizeram para criar um Portugal livre.
Um Portugal que agora, em 2014, está ameaçado por poderes ainda mais obscuros e terríveis, quiçá até do que os que governavam há quarenta anos atrás. Porque pior do que um escravo viver na sua escravatura, é um escravo que não deixa de o ser, embora sob a ilusão de que vive em liberdade.