segunda-feira, 25 de abril de 2011

Abril sempre?

Nunca este poema esteve tão actual.
Continuamos a ser os que tudo aceitam, que a tudo dizem sim, esperando que um dia alguém nos salve. Somos «vazios despovoados». Foi para isto que se fez Abril?

QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
Mais um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma de uma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
Com as cabeleiras das avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa historia sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Somos vazios despovoados
De personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco
Dão-nos um pente e um espelho
Pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
Um avião e um violino
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida, nem é a morte

Natália Correia - Album "Mudam-se os tempos mudam-se as vontades" (1971 - J.M.Branco)

Sem comentários: